C riamos um monstro. Foi assim, em tom de lamento, que o general Golbery do Couto e Silva se referiu ao Servio Nacional de Informaes, o SNI, o aparato de informaes estatal que ele ajudou a montar no incio da ditadura militar no Brasil. O objetivo era assessorar o presidente da Repblica com informaes estratgicas. No regime militar, o sistema cresceu e se transformou em uma complexa teia, com ramificaes em vrias esferas do governo e empresas estatais com um objetivo: monitorar cidados. Se tornou o monstro que abastecia a represso. Corta para 2021. O SNI foi extinto em 1990, h mais de 30 anos. Vivemos em uma democracia. O governo , teoricamente, civil. O pas tem uma Lei Geral de Proteo de Dados, a LGPD, e um complexo sistema legal que poderiam coibir eventuais abusos de espionagem por agentes do estado. Na prtica, porm, est em curso, h pelo menos dois anos, a criao de um sistema de informaes que se assemelha ao da ditadura inclusive pelo livre acesso dos militares e pela falta de transparncia e de controle pblico.Em 2018, o ento presidente Michel Temer publicou o Decreto n 9.527, que criou a Fora-Tarefa de Inteligncia. Coordenada pelo Gabinete de Segurana Institucional, o GSI, e executada pela Agncia Brasileira de Inteligncia, a Abin, a Fora-Tarefa tem como objetivo analisar e compartilhar dados e produzir relatrios de inteligncia entre os rgos participantes para subsidiar elaborao de polticas pblicas e aes governamentais no enfrentamento s organizaes criminosas. Dela, fazem parte as Foras Armadas, a Receita Federal, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, a Polcia Federal, a Polcia Rodoviria Federal, o Departamento Penitencirio Nacional e a Secretaria de Operaes Integradas do Ministrio da Justia e Segurana Pblica. Mas, por meio da Lei de Acesso Informao, descobri que so os rgos militares que dominam o sistema. Desde janeiro de 2019, quando comeou a funcionar, a Fora-Tarefa teve 55 reunies 53 ordinrias e duas extraordinrias, segundo o GSI, responsvel por coordenar o rgo. A Aeronutica, por exemplo, participou de todas. A Marinha afirmou que participa regularmente das reunies, mas no precisou a quantos encontros compareceu. A Receita Federal esteve em 52 reunies ordinrias. J a Polcia Federal, rgo que, em tese, seria o maior responsvel por investigaes de organizaes criminosas e segurana pblica, no participou de nenhuma delas. O Departamento de Polcia Rodoviria Federal esteve presente em apenas um dos encontros. Os demais rgos no responderam de quantas reunies participaram.Segundo os documentos, tambm participaram de reunies rgos como o Ministrio Pblico Federal, a Agncia Nacional de Aviao Civil, o Ministrio das Relaes Exteriores e a Secretaria Nacional de Polticas sobre Drogas, visando capacitao tcnica e nivelamento de conhecimento dos trabalhos da Fora-Tarefa de Inteligncia. A pauta dessas reunies no pblica, assim como as atuais aes e investigaes da Fora-Tarefa. Para tentar entender como o sistema est operando, recorri Lei de Acesso Informao e s assessorias de imprensa de todos os rgos envolvidos. Encontrei um jogo de empurra-empurra e um emaranhado de desculpas para no cumprir a lei, alm de muita confuso sobre as atribuies de investigao e inteligncia atividades que, se misturadas, podem ser catastrficas na violao de direitos de pessoas comuns que caem na mira do estado. Regras sigilosas O decreto afirma que o principal objetivo da Fora-Tarefa investigar organizaes criminosas. Segundo a lei 12.850, organizaes criminosas so aquelas em que quatro ou mais pessoas se associam para obter vantagem mediante a prtica de infraes penais cujas penas mximas sejam superiores a quatro anos. Como a definio genrica, isso pode incluir desde prticas como trfico internacional de drogas a crimes de terrorismo. O decreto, no entanto, no determina que categoria de organizao poderia ser investigada. So o GSI e a Abin que decidem isso, com critrios obscuros. Publicada j sob o governo Bolsonaro, a Norma Geral de Ao que regulamenta o funcionamento da Fora-Tarefa de Inteligncia e suas rotinas. Ela deveria esclarecer, por exemplo, como so definidas as organizaes criminosas e os limites para investigaes e compartilhamentos de dados. Mas se limita a regulamentar questes bsicas, como as atribuies dos representantes, o funcionamento do grupo de trabalho e a produo e difuso de documentos entre os membros. A norma expressa ao prever, por exemplo, que compete aos demais integrantes da Fora-Tarefa de Inteligncia acessar bancos de dados, aportar, processar, analisar e difundir informaes e conhecimentos acerca dos temas tratados, isto tudo sob a batuta do GSI, que coordena suas atividades. Entretanto, nesse regramento no h uma linha sequer de meno a critrios para definio das organizaes criminosas, tampouco sobre a forma e cuidados no compartilhamento e utilizao dos dados. A norma tambm determina que o GSI deve convocar os representantes dos rgos que compem a Fora-Tarefa de Inteligncia para definir, em conjunto, os casos para produo de inteligncia, o que no parece acontecer: a Polcia Federal no participou de nenhuma reunio e a Polcia Rodoviria Federal compareceu somente a uma. tambm funo do GSI garantir a participao de outras instituies na Fora-Tarefa, o que no acontece. O Ministrio Pblico Federal, por exemplo, afirmou que sequer houve formalizao de convite para integrar a Fora-Tarefa de Inteligncia. Em resposta s minhas perguntas, o GSI no falou objetivamente sobre os critrios. Informou apenas que busca identificar as organizaes criminosas com maior potencial de ameaa segurana do estado e da sociedade, e que as organizaes criminosas que dispem de recursos humanos, financeiros e tecnolgicos para expandir suas aes para alm da fronteira nacional so as que exigem maior ateno, citando o Decreto n 8.793, que institui a Poltica Nacional de Inteligncia.Atividades de inteligncia a cargo da Abin no podem ser confundidas com atividades de represso e investigao criminal.Tambm garantiu que nenhum movimento social do campo ou da cidade, sindicato, organizaes estudantis ou qualquer coletivo com atividades lcitas comprovadas foram consideradas organizaes criminosas. At agora, garante o GSI, quase toda a troca de informaes e relatrios aconteceu entre os membros do colegiado. H duas excees: a Agncia Nacional de Aviao Civil e o Banco Central do Brasil. Quais dados eles trocaram? impossvel saber. Um dos papis da Abin, vale lembrar, assessorar a presidncia da Repblica em questes relativas aos interesses e segurana do estado. Embora tambm tenha a misso de planejar e executar a proteo de conhecimentos sensveis, relativos aos interesses e segurana do Estado e da sociedade, o combate ao crime organizado no est entre suas atribuies especficas. Isto , segundo a lei brasileira, funo dos rgos de segurana pblica federais e estaduais. Eles esto sujeitos aos controles do Poder Judicirio e acompanhamento dos Ministrios Pblicos e so regidos por regras pblicas, o que poderia ajudar a proteger os cidados de abusos e arbitrariedades. No caso de uma investigao tocada pela Abin, que goza de sigilo na maior parte de suas atividades, isso no acontece. Foi por isso que, quando o decreto foi proposto, vrios advogados apontaram sua inconstitucionalidade. No papel das Foras Armadas investigar o crime organizado. Foram eles que apontaram, pela primeira vez, a semelhana do decreto de Temer com o monstro de Golbery. Agora, o SNI 2.0 est nas mos de Bolsonaro e seu governo militar. Militares empoderados Atividades de inteligncia a cargo da Abin no podem ser confundidas com atividades de represso e investigao criminal, responsabilidade das polcias estaduais e da federal. As atividades de inteligncia so eminentemente voltadas para preveno, tm o objetivo de subsidiar a tomada de decises no mais alto nvel poltico-estratgico. Esse tipo de atividade no pode nem deve ser misturada com as atividades de investigao, voltadas para persecuo penal, me disse Melina Risso, diretora de programas do Instituto Igarap, organizao de pesquisa na rea de segurana pblica. A coautora do livro Segurana pblica para virar o jogo se preocupa, por exemplo, com a linguagem utilizada sobre enfrentamento ao crime organizado que d margem a diferentes interpretaes e a falta de mecanismos de controle e prestao de contas dos rgos de inteligncia no Brasil. Em geral, as Foras Armadas so designadas para atividades de represso criminal em situaes pontuais caso, por exemplo, das intervenes federais e operaes de Garantia de Lei e Ordem. Quando ela tem que cuidar, numa misso determinada, especfica, com prazo para comear e prazo para acabar, explicou Priscila Brando, coordenadora do Centro de Estudos de Inteligncia Governamental, da Universidade Federal de Minas Gerais. Para a cientista poltica, a Fora-Tarefa coloca em evidncia a busca de empoderamento militar na esfera da segurana. A legislao, segundo ela, atua como um guarda-chuva para todas as irregularidades que viabilizaram essa intromisso militar. E tem um contexto claro: a ampliao do poder dos militares e de uma questo cultural de criminalizao dos movimentos sociais, que fogem da figura jurdica da organizao criminosa. No final de 2018, o PT entrou com uma ao no Supremo Tribunal Federal questionando a validade do decreto 9.527, alegando diversas irregularidades, como a inexistncia de controles externos e superviso das atividades da Fora-Tarefa, bem como o carter genrico da definio de organizao criminosa, que pode gerar a criminalizao de movimentos sociais e perseguio de opositores polticos.No Brasil, no temos a tradio de fiscalizar seriamente nem os rgos de segurana pblica, o que dir os de inteligncia.Na ao, tanto a Advocacia-Geral da Unio, a AGU, quanto a Procuradoria-Geral da Repblica, a PGR, j se manifestaram: consideram perfeitamente constitucional a criao de uma fora-tarefa do tipo. Inclusive, a AGU, ao defender a legalidade do decreto, manifestou que a Fora-Tarefa deve respeito aos direitos e garantias individuais, os quais, se vulnerados ou ameaados, podem ser objeto de tutela pelo Poder Judicirio. O problema saber se est ocorrendo violao de direitos quando as atividades so totalmente sigilosas. O controle externo das atividades de inteligncia brasileira, que inclui a Abin, o GSI e a Fora-Tarefa, exercido pelo Congresso Nacional, por meio da Comisso Mista de Controle de Atividades de Inteligncia, a CCAI. De acordo com o regimento interno, as reunies do grupo sero mensais, mediante convocao do presidente da comisso. Mas, em 2019, com os trabalhos da Fora-Tarefa de Inteligncia a pleno vapor, houve somente uma reunio da CCAI para apreciao de emendas oramentrias. No houve nenhum debate sobre a fiscalizao de quaisquer atividades de inteligncia, inclusive da Fora-Tarefa. O presidente da comisso na poca era Eduardo Bolsonaro, que sequer participou do encontro, tampouco cumpriu seu dever regimental de convocar reunies mensais da comisso naquele ano. Alm da falta de vontade do filho 03 do presidente Jair Bolsonaro de fiscalizar o trabalho do super-rgo a servio de seu pai, o problema de falta de controle estrutural. No Brasil, no temos a tradio de fiscalizar seriamente nem os rgos de segurana pblica, o que dir os de inteligncia, disse Melina Risso, do Instituto Igarap. A fragilidade dos mecanismos de controle das atividades de inteligncia muito preocupante, ainda mais em um contexto de retrica autoritria por parte do governo federal e o passado de ditadura no pas.Ilustrao: Henri Campe para o The Intercept BrasilProteo de dados ignorada A Lei Geral de Proteo de Dados, que regula a forma como o poder pblico e privado podem coletar e processar nossas informaes, entrou em vigor em setembro de 2020. A lei no se aplica s atividades de segurana pblica e investigao essas reas esto sujeitas a uma regulao prpria, a LGPD Penal, que ainda est sendo discutida. Na ausncia dela, no entanto, ficam valendo os princpios de proteo de dados e direitos dos titulares a saber, por exemplo, quem tem acesso e para qual finalidade suas informaes so utilizadas. Nada disso aplicado Fora-Tarefa. A desculpa do GSI que, desde o incio da pandemia, no houve reunies presenciais dos colegiados. Por isso, diz a Abin, eles no discutiram o tema, por a LGPD ter passado a vigorar j durante a pandemia. Nenhum dos rgos respondeu s 13 perguntas que eu fiz sobre a LGPD. S que os dados compartilhados entre os rgos componentes, inclusive os pessoais, continuam armazenados e acessveis, subsidiando a produo de relatrios de inteligncia e atividades de investigao no ter se encontrado presencialmente no motivo para que o super-rgo de investigao continuasse atuando margem da lei. J as outras instituies foram criativas nas respostas. A Receita Federal afirmou que a LGPD no se aplica Fora-Tarefa por se tratar de segurana pblica. A Polcia Federal tambm disse que no se aplica, mas por outra razo: investigao e represso de infraes penais. E o Departamento Penitencirio Nacional e o Exrcito tambm disseram que no se aplica, mas por uma terceira razo: atividade de inteligncia. O vasto leque de respostas mostra que nenhum dos participantes sabe que segurana pblica e inteligncia tm propsitos e regulaes especficas. E evidencia, tambm, que nem os membros do SNI 2.0 sabem a real razo de sua existncia. Alm disso, ningum sabe se os dados pessoais compartilhados so utilizados exclusivamente para os fins que a Fora-Tarefa de Inteligncia foi instituda, isto , para o combate ao crime organizado ou para outros objetivos o que, no jargo jurdico, se chama de desvio de finalidade. A gente no precisa da LGPD para a proteo de dados nesses rgos. Esse direito constitucionalmente protegido, me disse Estela Aranha, presidente da Comisso de Proteo de Dados e Privacidade da OAB-RJ. A gente est falando de devido processo legal, de no criar provas contra si mesmo. Se voc no tiver essas regras de proteo de dados garantidas num processo penal, voc no tem uma ampla defesa, porque voc no conhece os dados que esto sendo tratados por quem est te processando, explicou a advogada. O governo Bolsonaro est criando megabases de dados que renem informaes pessoais, biomtricas, de trabalho e sade. Elas podem ser cruzadas com sistemas de vigilncia nas estradas caso do sistema Crtex, do Ministrio de Justia e alimentadas com informaes de vrios rgos pblicos. Pelo menos a Abin j comeou o troca-troca de dados dos cidados mas ningum sabe se a Fora-Tarefa de Inteligncia tem acesso a essas informaes.A Autoridade Nacional de Proteo de Dados vinculada presidncia da Repblica e foi militarizada por Bolsonaro.